29 março, 2020

Uma carta da Itália para o Reino Unido: isto é o que sabemos sobre o seu futuro - por Francesca Melandri


Hoje me deparei com esse texto da autora italiana Francesca Melandri, dirigida aos ingleses, dizendo que ela está mandando um “recado do futuro” para eles.
Eu poderia ter escrito para vocês, meus amigos brasileiros, pelo menos 80% do que ela está dizendo aqui. Não é polêmica, não é político, não tem nada a ver com parar ou não parar. É simplesmente sentimento sobre o que estamos vivendo hoje aqui na Itália.

O link para o texto original está aqui (The Guardian-Original in English), mas decidi traduzir para o português também, abaixo a tradução com todos os créditos.

Uma carta da Itália para o Reino Unido: isto é o que sabemos sobre o seu futuro

Uma autora em Roma descreve o que esperar com base nas suas experiências de isolamento

Francesca Melandri
Tradução: Cassia Afini

A aclamada escritora italiana Francesca Melandri, que está em quarentena em Roma há quase três semanas devido ao surto de Covid-19, escreveu uma carta aos colegas europeus "do seu futuro", expondo a diversidade de emoções pelas quais as pessoas provavelmente passarão nas próximas semanas.

Eu estou na Italia escrevendo para vocês, o que significa que eu estou escrevendo do futuro. Estamos agora onde vocês estarão em alguns dias. Os gráficos da epidemia mostram-nos todos entrelaçados em uma dança paralela.

Estamos apenas alguns passos à sua frente no percurso do tempo, tal como Wuhan estava algumas semanas à nossa frente. Vemos vocês agirem como nós mesmos agimos. Vocês defendem os mesmos argumentos que nós defendíamos até há pouco tempo, entre aqueles que ainda dizem "é só uma gripe, porque a histeria"? e aqueles que já entenderam.

Enquanto observamos vocês daqui, do seu futuro, sabemos que muitos de vocês, como foram orientados a se fecharem em suas casas, citam Orwell, alguns até Hobbes. Mas logo vocês estarão muito ocupados para isso.

Primeiro, vocês vão comer. Não apenas porque será uma das poucas coisas que vocês ainda poderão fazer.

Vocês encontrarão dezenas de grupos nas redes sociais com tutoriais sobre como passar seu tempo livre de maneira proveitosa. Vocês participarão de todos, depois de alguns dias os ignorarão completamente.

Vocês vão pegar a literatura apocalíptica de suas estantes, mas logo perceberão que não têm vontade de ler nada disso.

Vocês vão comer de novo. Você não dormirão bem. Vocês se perguntarão o que está acontecendo com a democracia.

Vocês terão uma vida social on-line incessante - no Messenger, WhatsApp, Skype, Zoom...

Vocês sentirão falta dos seus filhos adultos como nunca sentiram antes; a percepção de que vocês não têm ideia de quando os verão novamente vai bater como um soco no peito.

Os velhos ressentimentos e desentendimentos vão parecer irrelevantes. Vocês vão telefonar para as pessoas com quem juraram nunca mais falar, para perguntar: “Como você está?”

Muitas mulheres vão apanhar dentro de suas casas.

Vocês pensarão no que está acontecendo com todos aqueles que não podem ficar em casa porque não têm uma casa.

Vocês se sentirão vulneráveis ao sair para fazer compras nas ruas desertas, principalmente se você é uma mulher.

Vocês vão se perguntar se é assim que as sociedades entram em colapso. Isso realmente acontece tão rápido?

Vocês vão bloquear esses pensamentos e quando voltarem para casa vão comer novamente.

Vocês vão ganhar peso. Vocês vão procurar treinos de exercícios físicos on-line.

Vocês vão rir. Vocês vão rir muito. Vocês vão ostentar um humor negro que nunca tiveram antes. Mesmo as pessoas que sempre levaram tudo muito a sério, vão contemplar o absurdo da vida, do universo e de tudo isso.

Vocês marcarão encontros nas filas de supermercado com seus amigos e queridos, de modo a vê-los pessoalmente por breves instantes, respeitando as regras de distanciamento social.

Vocês vão contar todas as coisas das quais não precisam.

A verdadeira natureza das pessoas ao seu redor será revelada com total clareza. Vocês terão confirmações e surpresas.

Intelectuais que eram omnipresentes nas notícias desaparecerão, suas opiniões subitamente irrelevantes; alguns se refugiarão em racionalizações que serão tão totalmente desprovidas de empatia que as pessoas deixarão de escutá-las. Pessoas que vocês haviam negligenciado, ao contrário, se mostrarão tranquilizadoras, generosas, confiáveis, pragmáticas e visionárias.

Aqueles que convidarem vocês a verem toda essa confusão como uma oportunidade de renovação planetária ajudarão vocês a colocar as coisas em uma perspectiva maior. Vocês também os acharão terrivelmente irritantes: legal, o planeta está respirando melhor por causa da redução das emissões de CO2 pela metade, mas como vocês pagarão suas contas no próximo mês?

Vocês não entenderão se testemunhar o nascimento de um novo mundo é algo grandioso ou lamentável.

Vocês vão tocar música das suas janelas e de seus jardins. Quando vocês nos viram cantando ópera de nossas varandas, pensaram "ah, aqueles italianos". Mas sabemos que vocês também cantarão canções inspiradoras uns para os outros. E quando vocês tocarem bem alto “I will survive” das suas janelas, nós vamos observá-los e acenar como o povo de Wuhan, que cantou de suas janelas em fevereiro, acenou enquanto nos observava.

Muitos de vocês vão adormecer jurando que a primeira coisa que farão assim que a quarentena terminar é pedir o divórcio.

Muitas crianças serão concebidas.

Suas crianças terão aulas on-line. Elas serão irritantes, elas serão sua alegria.

Os mais velhos vão desobedecer como adolescentes desordeiros: vocês terão que brigar com eles para proibi-los de sair, de se infectar e de morrer.

Vocês vão tentar não pensar nas mortes solitárias dentro dos centros de terapia intensiva.

Vocês vão querer cobrir com pétalas de rosa todos os passos dos trabalhadores de saúde.

Será dito a vocês que a sociedade está unida em um esforço comunitário, que vocês estão todos no mesmo barco. Isso será verdade. Esta experiência mudará para sempre a forma como vocês se veem como parte individual de um todo maior.

A classe, no entanto, fará toda a diferença. Estar fechado em uma casa com um lindo jardim ou em um projeto habitacional superlotado não será a mesma coisa. E também não é a mesma coisa poder continuar a trabalhar de casa ou ver o seu trabalho desaparecer. Aquele barco no qual vocês estarão navegando para derrotar a epidemia não parecerá o mesmo para todos nem é realmente o mesmo para todos: nunca foi.

Em algum ponto, vocês perceberão que é difícil. Vocês terão medo. Vocês falarão sobre seus medo com as pessoas que vocês amam, ou guardarão dentro de vocês para não sobrecarregá-los também.

Vocês vão comer novamente.

Nós estamos na Italia e isto é o que sabemos sobre seu futuro. Mas é apenas uma adivinhação em pequena escala. Nós somos videntes muito comedidos.

Se olharmos para o futuro mais distante, o futuro que é desconhecido tanto para vocês como para nós, só podemos dizer isto: quando tudo isto acabar, o mundo não será o mesmo.

© Francesca Melandri 2020

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